sábado, 31 de janeiro de 2009

Memórias de um funeral

Uma das coisas que considero bastante interessante nesta vida cheia de mistérios é a experiência da primeira vez. Cheguei ao mundo como uma tabula rasa, nenhuma inscrição; ou para ser mais moderna, como um carro novo, zero quilômetros rodados de experiência.
Tudo que conheci, através dos meus sentidos e ao longo de 22 anos, exigiu uma primeira vez, um primeiro contato. É uma pena que a maioria das coisas comuns do dia-a-dia, não por isso menos interessantes, me foram apresentadas ainda bebê. Nesta idade, eu não julgava interessante guardar na memória o processo do primeiro contato e o impacto que ele causava em mim.
Fico imaginando como seria recordar a sensação de quase me afogar no leite materno, ou a surpresa de encontrar seres diferentes de nós humanos, notar que alguns deles precisam andar de quatro e outros tem a liberdade de voar. O primeiro contato geral com o mundo, ocorrido logo após o parto, deve ter sido algo estranho. A tabulinha rasa que eu era não tinha nenhuma referência de outro mundo para comparar com este. Tudo foi uma novidade, tão rápida e chocante que nem deu tempo de gravar na memória.
Meu primeiro contato com um cadáver lembro-me bem. Foi aos cinco anos. Já ouvira meus pais falando de gente morta, porém nunca tinha visto um falecido com meus próprios olhos. A notícia da morte do vovô chocou a família inteira, todos ficaram tristes e em silêncio, larguei as bonecas num canto qualquer e imitei meus pais em respeito a meu avô. Minha mãe pediu que eu tomasse um banho e colocasse a roupa que ela designou. Atendi sem nenhum protesto. Quando chegamos ao velório, fui de mãos dadas com meu pai até o caixão. Vi o corpo dele deitado e os olhos cerrados como se estivesse dormindo, somente quando toquei em sua pele fria percebi a diferença entre estar vivo e estar morto. Logo que notei a frieza da morte recolhi rapidamente minha mão, fiquei com medo que meu sangue congelasse por contaminação. É claro que fiz de tal maneira que ninguém percebeu minha repulsa pelo cadáver. Perguntei ao meu pai o que aconteceria com ele. Meu pai respondeu carinhosamente que sua alma iria ficar ao lado de Deus, mas o que eu queria saber era do corpo. Para mim, a alma era algo que Deus emprestava para gente poder viver, como tomamos o oxigênio emprestado do ar. Eu era o meu corpo e o meu corpo era eu. O que mais me assustava na morte era o que aconteceria com o corpo depois que eu morresse. Tive a resposta no dia seguinte.
Já estávamos no cemitério e todo aquele cortejo fúnebre já havia passado. Quando vi descerem o caixão com o corpo de meu avô trancado para sempre lá dentro entendi o que acontecia com as pessoas depois da morte. Seríamos todos enterrados. Ficaríamos para sempre dentro de uma caixa preta por debaixo da terra. Logo iria acabar o oxigênio e então a alma subiria para o céu, mas o corpo continuaria lá, preso por toda a eternidade. Todos os sorrisos, todos os abraços e seu coração ficariam lá embaixo. Ele estaria sozinho, trancado no escuro. Para mim, isso era um castigo. Se a alma tinha direito de ficar perto de Deus depois da morte, o corpo era castigado. Também pensei em um detalhe importante, todas as pessoas do mundo que morreram, e foram muitas, calculei, acabaram debaixo da terra, pensei então que teriam de reservar muita terra para servir de cemitério, pois ainda havia muita gente no mundo para ser enterrada.
Estávamos voltando para casa. Eu não queria deixar meu avô lá embaixo e voltar como se nada estivesse faltando. Achei uma injustiça o que estavam fazendo com meu vovô. Fiquei com raiva dos adultos que faziam isso e ao mesmo tempo senti pena de meu pai, eu sabia que ele também não queria deixar o pai dele lá embaixo e eu sabia que o vovô fazia mais falta para ele do que para mim. Ninguém protestou e voltamos para casa.
Hoje, sei que o corpo apodrece depois que perde os sinais vitais, somos matéria orgânica como uma fruta. Morrer é arrancar uma maça do pé de macieira. Só não sei o que acontece com a alma. Naquela época eu tinha medo do que aconteceria com meu corpo, agora tenho medo do que acontecerá com a minha alma. Enquanto isso, aguardo meu primeiro contato com a morte.

3 comentários:

LourencoBr83 disse...

Nossa bebê mto loko esse seu post, eu entendi tudinho.. É uma sensação estranha mesmo, né? Enfim, um pouco macabro.. mais ta bem legal.. Te AMO to com SAUDADE ;***************** BjO BJO

LourencoBr83 disse...

vou ler o resto ta.. bjo

Gabriela Goulart disse...

É real, lu? Parte de tuas memórias ou conto?

Muito legal mesmo, muito bem escrito!

Nunca tive esse tipo de contato que tu tivesse...isso pq quando criança meus pais nunca permitiram que eu acompanhasse um velório e depois de grande, no meu primeiro contato (não sei dizer a idade), apesar de que as dúvidas já não eram as mesmas, a sensação provavelmente permanece ao longo de toda uma vida...primeiro porque o tempo que, quando crianças, levamos para descobrir o que ocorre com o corpo é ainda menor que aquele que levamos a buscar o significado da alma...além do que, nunca estamos preparados para encarar que aquele corpo sem vida, largado ao apodrecimento como tu dissestes, somos nós no futuro... a história se repete e o mundo continua